segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

A pior das loucuras é tentar ser sensato num mundo de loucos...


“A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de loucos”. Essa colocação – sensata, inclusive – foi feita por Erasmo de Roterdã em seu célebre livro Elogio da loucura.
Erasmo de Roterdã foi um filósofo e teólogo holandês de formação humanista, que viveu na época do Renascimento. Era bastante respeitado pelos eclesiásticos e protestantes, mas profundamente odiado pelos cristãos, pelo fato de ele ter sido um crítico assíduo da Igreja Católica, instituição detentora de enorme influência política naquela época.
Filho de uma relação ilícita entre um padre e uma moça, Roterdã recebeu forte educação religiosa. Era inquieto e insatisfeito, de temperamento moderado. Falava sempre mais do que o necessário, mas, socialmente, evitava ser o centro das atenções – apesar de ter sido conhecido por sua boa retórica e disposição para intermináveis diálogos.
Em 1484, aos 15 anos de idade, ele se tornou órfão. Seu pai e sua mãe morreram no mesmo ano, com intervalo de poucos meses.
No ano seguinte, começa a trabalhar como monge no convento de Steyn, não por vocação ou vontade, mas como única saída para um estudante sem dinheiro que deseja prosseguir seus estudos. Após sete anos encubado no convento, e tendo aprendido bastante sobre as práticas, doutrinas, preceitos e valores católicos, Roterdã se forma padre.
O holandês abraçou o sacerdócio, para abandoná-lo logo em seguida. Especializou-se no pensamento clássico e erudito. Viajou e ensinou em vários países como Inglaterra, Espanha e Bélgica.
Ao longo de sua carreira teológica e acadêmica, Roterdã imergiu em manuscritos escolásticos e católicos, o que fez surgir sua percepção crítica sobre as contradições, incoerências e dissidências do pensamento obsoleto da igreja. Ele é uma figura importante para se entender as transformações pelas quais passou a fé religiosa da Idade Média à Renascença.
Roterdã não tinha pudores: costumava dizer tudo que lhe vinha à boca, pouco se preocupando com as consequências de suas palavras. Por esse hábito de ser autêntico, excêntrico e, por vezes, desagradável e indecoroso, ele foi menosprezado por muitos que o desveneravam, ainda que outros o amassem por estas mesmas características.
Como humanista, ele acreditava que a razão deveria estar a serviço do homem, e não o contrário. Criticava com ferocidade teólogos conservadores e alguns filósofos de sua época, alegando que seus raciocínios eram distorcidos, desprovidos de sentido, tendenciosos demais. Era totalmente contra aqueles que perpetuavam o pensamento das trevas e defendiam uma fé superficial e artificial.
Em vida, Roterdã escreveu pouco, mas suas palavras provocaram (e ainda provocam) considerável ressonância, principalmente entre os intelectuais e estudiosos de história e filosofia humanista.
Sua obra mais importante do ponto de vista teológico é Colóquios. Mas sua obra de maior impacto, a qual o popularizou, é Elogio da Loucura.

Elogio da Loucura

Este livro foi escrito por Roterdã em 1501, em uma semana (a extensão do livro é tão curta quanto rápida foi a sua produção).
Em resenha deste livro, a autora Evelyse Carvalho Ribas afirmou:
“Em sete dias, com absoluta liberdade de concepção e total ausência de compromissos, Erasmo de Roterdã escreveu este inteligente sermão, dirigindo críticas mordazes à vida numa sociedade impregnada de uma cultura tradicional medíocre e hipócrita.”
A Loucura é a protagonista do livro. Roterdã escreve em primeira pessoa, como se fosse, ele mesmo, a própria loucura, esta que narra a história. Estranhamente, estabelecemos uma certa empatia com esta personagem ilustre, uma vez que ela é representada por todos nós, loucos.
O que Roterdã fez em Elogio da Loucura foi convidar o leitor a observar algumas interpretações meticulosas sobre a natureza humana, suas fragilidades e imperfeições. No livro, Roterdã faz inúmeras referências a divindades antigas, talvez no intuito de pressupor que a loucura é intrínseca não só aos mortais, mas também aos deuses.
Roterdã pensava que tudo o que os homens fazem está cheio de loucura. “São loucos tratando com loucos”. A loucura, no entanto, é sempre vista como uma doença ou característica negativa, pejorativa e indesejada, mas, no livro de Roterdã, ela é personificada da forma mais encantadora.
Já que ninguém dá créditos e reconhecimentos à loucura, ela trata de tecer elogios a si mesma, valorizando-se.
A insanidade demonstra como está presente na vida dos homens; estes devem muito de seus feitos a ela. Roterdã defende que a loucura é retroalimentada pelos prazeres mundanos, e as paixões são reguladas pela loucura:
“Cada momento da vida seria triste, fastidioso, insípido, aborrecido, se não houvesse prazer, se não fosse animado pelo tempero da loucura.”
Ora, quem, ao longo dos tempos, elogiou a loucura? Os loucos, ou seja, todos, provavelmente dirão que elogiar a loucura é atentar-se a si próprios de forma perigosamente negligente.
“Parece incrível, desde que o mundo é mundo, nunca houve um só homem que, manifestando o reconhecimento, fizesse o elogio da loucura.”
No livro, o autor cita um dos versos da Bíblia, contida no primeiro capítulo dos Eclesiastes, que diz: “O número dos loucos é infinito”. Essa infinidade compreende todos os seres humanos. Ninguém está são e salvo da loucura. Quem foge dela corre ao seu abraço.
“Para um mortal, é sabedoria não querer ser mais sábio do que lhe cabe por sua natureza, concordar com os costumes da multidão e participar de bom grado das fraquezas humanas. Mas, dizem, é justamente isso a loucura. Não a contestarei, desde que em troca reconheçam que assim se recita a comédia da vida.”
As pessoas costumam considerar como loucura todos os atos que lhe são estranhos, absurdos e avariados, tendo em vista a sua dificuldade em reconhecer diferenças ideológicas, de moral e ética; e sua facilidade em categorizar os outros em termos de normalidade ou anormalidade.
A palavra “loucura” é normalmente associada aos desvios normativos da conduta insana, e faz lembrar de sanatórios, manicômios e clínicas psiquiátricas, por exemplo. Há os loucos internados nesses estabelecimentos, e os loucos que estão aparentemente livres. A principal diferença de loucura aí é que, enquanto alguns têm doenças e distúrbios mentais graves que os impelem, entre outros motivos, à insanidade criminosa ou destrutiva, outros estão livres para esconder sua insanidade atrás de vícios, manias, subterfúgios e prazeres, sem necessariamente acharem que estão fazendo mal para si ou para os outros.
“Os maiores males infiltram-se na vida dos homens sob a ilusória aparência do bem.”
Passa-se a vida fazendo crer que os indivíduos devem seguir um modo de vida correto e ter uma conduta apropriada, pois, se não for assim, logo surge o pensamento comum de que algo bizarro ou perigoso está promovendo influência no comportamento destes que são vistos como loucos. Nesses casos, aqueles que julgam o louco como tal o fazem por uma razão principal dentre as demais: isso as faz sentir que são normais e sadias. Mas elas se iludem, cedo ou tarde, ou acabam fadadas à hipocrisia, visto que, talvez, no futuro, elas possam cometer as mesmas loucuras que julgaram péssimas no passado, mas que, agora, para elas, dificilmente são vistas dessa forma. A loucura é híbrida e dissimulável. Seu reconhecimento se dá, ou não, dependendo do contexto em que a pessoa vive e o que ela considera como certo ou errado, normal ou anormal.
“É que, em geral, dizemos ser louco todo aquele que, sendo curto de vista, toma um burro por jumento, ou que, por ter pouco discernimento, considera excelente um mau poema.”
As diferenças de ponto de vista são o que muitas vezes causam as atribuições de loucura. Esta é, assim, de certa forma, ridicularizada e até banalizada. Subtrai seu efeito universal quando é compartimentalizada, mas esse efeito, embora diminuído por considerações preconceituosas e estereotípicas, nunca passa. Quem diz viver (ou estar vivendo) em paz apenas esquece que sua loucura está distraída, se divertindo, por exemplo, ou então observando, aguardando, à espreita.
A ideia de que é necessário categorizar tipos de loucos (entre criminosos ou não, por exemplo) é confundida com a atribuição geral de que existem dois tipos de pessoas, falando sobre a loucura: sãos ou loucos. E sabemos que, na natureza humana, ninguém é totalmente igual a ninguém. Tampouco é certo discernir os humanos em dois tipos, quando existem mil formas de diferenciá-los.
É fascinante como Roterdã constrói uma personalidade humana para a loucura. Ela é sempre presente, está enraizada no âmago espiritual, mas também é mentalmente personalizada por cada indivíduo no que tange ao uso que se faz dela.
O autor classifica a loucura em duas categorias: a loucura sã, ou seja, inteligente, perspicaz e astuta; e a loucura insana, aquela que produz um saber enganoso e leva aos maus caminhos. Pode-se dizer que a natureza da loucura é uma prova contundente da ambiguidade humana: não é possível escaparmos da contradição, seja com atos, pensamentos, palavras ou atitudes. Quem acredita ser totalmente íntegro está condenado a deslizar logo no próximo movimento, e sem perceber. Segundo Roterdã:
“Os mais perigosos males são aqueles que não são percebidos.”
A loucura também está presente – ainda mais – na infância. De acordo com o autor, a infância é quase toda regada pela loucura, porque é nessa fase que mais falamos e agimos sem pensar, e estamos menos preocupados com as consequências de nossas ações. Justamente por essa desnecessidade de sabedoria, é que somos mais felizes quando crianças. Segundo Roterdã, quanto mais velho alguém vai se tornando e mais sabedoria for adquirindo nesse processo, mais se distancia da felicidade. Para ele, a sabedoria causa mais tristezas do que vantagens, pois o homem adulto, futuramente velho, vai tomando reconhecimento de certos aspectos cruéis da vida que sua ingenuidade lhe obliterou no passado. No paralelo que Roterdã faz entre infância e velhice, a loucura reina em ambas.
No livro, o autor também fala sobre uma vida feliz. A felicidade, para Roterdã, está na autenticidade, na genuinidade: em querer ser quem se é.
Para falar sobre felicidade, ele remete ao Mito da Caverna, de Platão. No Mito, aprendemos que a realidade de uma pessoa é dirigida pela forma como o mundo se apresenta a ela, e não como ela se mostra ao mundo. Assim, as pessoas têm focos e realidades diferentes, por mais que enxerguem a mesma coisa; elas lidam com aquilo que lhes é imposto pelos sentidos. Platão, em seu famigerado Mito, nos mostra que, para todo alguém, existirá sempre um mundo contemplativo melhor do que aquele onde se vive. Por outro lado, Roterdã inverte o sentido do Mito, alegando que, independentemente de um mundo ideal, cada indivíduo pode ser verdadeiramente feliz dentro de sua realidade, sendo esta verdadeira ou não.
A busca constante por felicidade é uma das maiores causas de infelicidade. Roterdã aponta que “o homem não foi feito para ser perfeitamente feliz na terra”.
O holandês escreveu também que, para alguém conseguir provar da felicidade, é preciso que, antes, nutra amor por si mesmo. O autor faz algumas indagações: “Dizei-me, pergunto-vos, pode-se amar alguém quando se odeia a si mesmo? Pode-se viver em bom entendimento com os outros quando não se está de acordo com o próprio coração? Pode-se oferecer algo de bom à sociedade quando se está aborrecido e fatigado com a própria existência?
Roterdã afirma que seria preciso ser mais louco do que a Loucura mesma para responder afirmativamente a essas perguntas.
A satisfação do amor próprio está nele mesmo, enquanto a satisfação do amor por outrem é dual: começa no doador e termina em quem a recebe. Se essa satisfação cessa antes de ser compartilhada, é apenas egolatria. Na falta de ser amado, a saída é amar-se. “Se ninguém te louva, farás bem em louvar-te tu mesmo”.
Roterdã também falou sobre aquele tipo de amor baseado unicamente no elogio às aparências: o que é frágil, líquido e superficial.
“O amor que apenas dispõe de beleza para o manter de boa saúde vive pouco e está sujeito a desmaios.”
O texto também analisa, de forma satírica, a estrutura moral e hipocrisia religiosas da época do Renascimento, quando conspirações, assassinatos, traições, intrigas e rapinagens aconteciam ciclicamente, como parte de jogos políticos violentos.
O autor acreditava que “a fé é a principal loucura humana”. Embora fosse assumidamente cristão, ele era contra o poder hierárquico dessa instituição, que declara guerras, discute sobre o mistério divino, faz cerimônias e rituais metódicos, sendo que algumas das orientações do cristianismo são a prática da caridade, fraternidade e humildade. Nem sempre se pratica aquilo que se prega.
Bem, como é de se imaginar, essa obra foi mais mal recebida do que bem aceita em seu tempo. Os leitores daquela época e também os contemporâneos dividem suas opiniões entre protestos furiosos e elogios contumazes.
Elogio da Loucura é um livro de conteúdo atemporal; serve muito bem aos dias de hoje. Para a sociedade contemporânea, a loucura sempre foi uma ameaça perpétua. Pretende-se aprisionar o máximo de loucos possível, mas, para isso, a humanidade toda teria que ser presa, na acepção de Roterdã.
Roterdã é mais um dos autores que foram (e continuam sendo) acusados de blasfêmia e heresia. Mas ele não foi queimado na fogueira por conta dessas acusações, muito menos sua figura deixou de ter importância ao descrever as nuances do comportamento humano em uma sociedade rústica que muito mudou até hoje, embora a loucura em si – matéria da discussão – seja e esteja permanente, em variados graus, na mente de todos.
Para aqueles que criticam o tom satírico e até ofensivo de Roterdã em seu Elogio da Loucura, o autor esclarece:
“Aquele que não poupa nenhuma condição humana faz ver claramente que são os vícios, e não a mim, que ele critica. Se houver, portanto, alguém que pense que o ofendi nessa brincadeira, então é que ou sua consciência o acusa em segredo, ou que ele teme que o público possa acusá-lo […] Nesta obra, busquei antes divertir-me do que ferir alguém.”

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